Conheça a cidade bilionária do centro-oeste paulista que abastece o mundo de alimentos enquanto pelo menos um a cada quatro de seus habitantes depende de programas sociais e iniciativas solidárias para ter o que comer à mesa. Sirva-se da realidade da fome em Marília.
À beira de seus 85 anos, dona Isaura precisa carregar seus passos pesados para além dos portões de sua casa para chegar até a dispensa de solidariedade de um projeto social para ter o que comer por alguns dias.
A caminhada, mesmo que de algumas quadras, perdura há mais de um ano, às segundas e quartas-feiras. As marmitas que recebe são divididas de forma regrada com o filho de 60 anos, cujos membros superiores e inferiores são atrofiados.
“Tem vez que não janto. Só almoço. Espero até as 15 horas para comer. Aí a gente consegue passar melhor a noite”, conta a mulher de voz tão fraca e olhar distante. “Não tenho comida para preparar em casa”.
Da pensão de R$ 600 do falecido marido que informou receber por mês, lhe sobrariam hoje apenas R$ 150 para sobreviver. “Pago aluguel, contas da casa e emprestei dinheiro para ajudar meus netos”, contou.
DEMOGRAFIA DA FOME
Dona Isaura e seu filho vivem nos acanhados cômodos de uma casa de fundo de terreno na periferia da zona sul, a área mais populosa e carente de Marília, cidade do centro-oeste do estado de São Paulo, o mais rico do Brasil.
Embora seja autoproclamada há décadas como ‘capital nacional do alimento’ por abrigar grandes fábricas do setor como Nestlé, Marilan e Dori, Marília tem pelo menos um a cada quatro de seus 242 mil habitantes residentes na filial da fome.
Esta demografia da insegurança alimentar no município consta do último Relatório de Programas e Ações do Ministério da Cidadania publicado em dezembro de 2022 com dados apenas do Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal.
Segundo este contingente oficial, 59.677 pessoas estavam cadastradas à porta de entrada dos programas sociais, das quais, 7.700 em situação de pobreza, 19.892 de baixa renda e 17.167 em extrema pobreza.
À PROVIDÊNCIA
Nesta segunda (20), dona Isaura expôs-se à chuva e ao risco de queda, que costuma acometer os idosos, mas não voltou de mãos vazias do projeto Marmitas Solidárias, servido por voluntárias na associação de moradores do Nova Marília, na zona sul.
Levou galinhada, salada de legumes e três pãezinhos caseiros. Apesar do carnaval, o calendário de entrega foi mantido. “As pessoas têm fome e precisam deste alimento. Não podemos parar”, frisou a coordenadora, Sandra Farias.
Apesar da produção reduzida nesta segunda (20) a 130 marmitas para atender apenas a todas as famílias cadastradas, o projeto, criado em 2020 para socorrer aos que tinham fome durante pandemia, viu sua demanda aumentar.
“Fazíamos 600 marmitas semanais, mas agora subimos para 700”, contabilizou Farias. “A fome continua assolando as pessoas mais carentes. O maior problema é o desemprego e também o preconceito com os mais pobres”, pontuou.
A exemplo de seus assistidos, o projeto tem dependido de doações para se manter de pé. “Falta de tudo. Dias atrás, não tínhamos feijão. Apareceu a Famema e nos doou vários quilos. Seguimos assim, ao passo da providência divina”, afirmou Farias.
SOLIDARIEDADE ITINERANTE
Na mesma medida de fé caminham também aqueles que vão ao encontro dos famintos que vivem pelos cruzamentos por onde a cidade passa diariamente e alimenta sua rotina frenética de passeios e compromissos.
Entre os mais assíduos estão os membros da Pastoral de Rua da Igreja Católica e de centros espíritas que há décadas contribuem para saciar a fome de pessoas em situação de rua, cuja população hoje é estimada em 350 pessoas.
Dispersos principalmente pelo centro da cidade, os andarilhos têm café da manhã à mesa diariamente na Missão Louvor em Glória, em frente à Catedral São Bento, ou aos domingos, no Santuário Nossa Senhora da Glória, pela Pastoral da Solidariedade.
Instalado provisoriamente na Casa Cidadã, o Centro Pop, cujo atendimento municipal é especializado a pessoas em situação de rua, tem oferecido vales-refeições e banhos, à medida que consegue atender a demanda diária.
FORA DO CARDÁPIO
Recém-inaugurado na zona sul, a nova unidade do restaurante popular municipal Nosso Prato não impediu a alta da demanda por comida no projeto Marmitas Solidárias, apesar do valor acessível por prato servido - apenas R$ 2.
Com renda mensal declarada entre R$ 300 e R$ 600, os atendidos não dispõem de suporte financeiro para manter uma rotina alimentar neste serviço público, seja pessoal ou, ainda menos, somados os membros da família.
Ao blog, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informou ter oferecido 5.961 refeições, em janeiro deste ano, para crianças e idosos do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV).
Ainda no mesmo período, segundo a Pasta, foram distribuídos 42.396 litros de leite pelo Programa Viva Leite e são entregues 150 cestas básicas a “famílias de vulnerabilidade social” em cada um dos cinco Centros de Referência de Assistência Social (CRASs), além das demandas judiciais.
A secretaria admitiu a necessidade de ampliação da malha de atendimento do CRAS, hoje com cinco portas para atender “24 mil famílias”. “Seria importante termos mais três, sendo uma no Maracá, uma no Altaneira e uma volante”.
FOME NA IGREJA
Pela terceira vez em seis décadas, a Campanha da Fraternidade (CF) promovida pela Igreja Católica no período quaresmal – os 40 dias das Cinzas desta quarta (22) à Páscoa, em 9 de abril – terá a fome como tema.
O lema de 2023, o versículo 16 do capítulo 14 do Evangelho de Mateus – “dai-lhes vós mesmos de comer” – remete à ordem dada por Jesus Cristo aos seus discípulos antes de receber cinco pães e dois peixes que multiplicaria para atender a multidão.
“O objetivo geral desta campanha é sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentarem o flagelo da fome, sofrido por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo”, afirmou o assessor diocesano da CF, padre Danilo Nobre dos Santos, ao jornal ‘No Meio de Nós’, da Diocese de Marília.
Além das iniciativas paroquiais, a Missão Louvor e Glória mantém a Casa Mateus 25. Fundada em 1996, a instituição acolhe gratuitamente pessoas em situação de rua, sobretudo os dependentes químicos. A sede atual é no Jardim Continental, na zona sul.
Entre as igrejas evangélicas, destaca-se o Ministério Vida Plena, ação social desenvolvida pela Primeira Igreja Batista (PIB). Durante a pandemia, pessoas carentes foram alcançadas com alimentos, máscaras faciais, roupas e calçados.
“A PIB Marília continua trabalhando com firmeza no cuidado com as pessoas na área espiritual, emocional e física, pois reconhecemos que esse é o chamado dos cristãos autênticos”, afirmou o pastor Enéias José Ferreira.
Enquanto socorrem a urgência da fome, as centenas de templos espalhados principalmente pelas periferias da cidade também levam o alimento da fé para alma do que creem em Deus ou pelo menos em si.
“Por mais que se possa acumular coisas, o vazio existencial que o ser humano carrega em si é do tamanho da presença de Deus, que restaura a pessoa em todas as suas necessidades”, afirmou o pastor presidente da PIB, Domingos Jardim da Silva.
O CAPITAL DO ALIMENTO
À venda nas prateleiras de todo o Brasil e exportados para dezenas de países, os biscoitos, chocolates, gomas, entre outros, produzidos em Marília saciam os lucros da indústria alimentícia e a economia da cidade com milhares de empregos diretos e indiretos e milhões em arrecadação de impostos aos cofres municipais.
Em 2019, a abundância da produção mariliense compreendia 12% do mercado nacional, segundo projeto de lei que conferiria o título de ‘Capital Nacional de Alimento’ à cidade, fermentada por toneladas de consumo de farinha de trigo.
A proposta acabaria arquivada, ao final de 2022, antes que fosse degustada pelo plenário do Senado Federal, recolhida aos arquivos pelo prazo de validade vencido do cardápio de proposituras não votadas na legislatura anterior.
Semelhante descarte houve no Legislativo em Marília com a Lei 4.566/1998, de autoria de Valter Cavina (PSDB) que instituiu o slogan ‘Marília – Capital Nacional do Alimento’, revogada pela Lei 7217/2010.
BANCO MUNICIPAL
Segue em vigor desde 2019, no entanto, a Lei Municipal 8280/2018, de autoria de José Luiz Queiroz (PSDB), que criou o Banco Municipal de Alimentos, sancionado no terceiro ano do primeiro mandato da reeleita gestão Daniel Alonso.
Aprovado como um programa, o banco municipal arrecadaria e distribuiria alimentos produzidos pela indústria, restaurantes, supermercados, sacolões e pelo público geral em prol de pessoas e entidades cadastradas.
Além de servir a quem tem fome, o programa ataca outra situação constrangedora à cidade que se orgulha de produzir tantos alimentos: o desperdício. Não há uma estimativa oficial sobre esse problema no município.
Do papel à prática, o banco municipal de alimentos precisa de um local adequado, aprovado pela Vigilância Sanitária, para que sirva de entreposto para recebimento, avaliação e distribuição de todo tipo de alimento.
“É algo complexo que demanda estrutura própria, envolvimento de várias secretarias e da sociedade para que funcione de forma adequada e permanente”, afirmou ao blog a secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Wania Lombardi.
No Orçamento Geral do Município de Marília para o exercício de 2023, o único recurso previsto é de R$ 105 mil para “manutenção do banco de alimentos” da Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
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