Prefeito cumpre promessa de campanha com violação de equipamento locado por contrato milionário e pago pela metade pelo município. Suspensão de fiscalização de velocidade favorece minoria infratora, segundo dados oficiais da Emdurb. Apenas duas de 15 mortes no trânsito em Marília desde 2023 ocorreram em vias municipais com ‘pardais’
Entre agosto de 2023 e maio de 2024, ocorreram pelo menos 23 acidentes de trânsito no entroncamento entre as avenida Tiradentes, Carlos Artêncio e João Ramalho e a rua das roseiras, em frente ao restaurante Kieza, no centro-sul de Marília.
Em sua maioria, colisões entre carros e motocicletas, rivais recorrentes na disputa por espaço no principal corredor de acesso àquela região e à beira de trevo da Rodovia do Contorno. Entre mais de uma dezena de feridos, não houve óbitos.
Todos os acidentes foram oficialmente registrados pelo Sistema de Informações Gerenciais de Sinistros de Trânsito (Infosiga) do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) às vistas de um radar de controle de velocidade.
Abaixo dele, e no meio-fio das estatísticas em início de mandato, o prefeito Vinicius Camarinha (PSDB) apareceu na manhã deste sábado (4) para interromper o funcionamento do equipamento a próprio punho.
Com um alicate corta vergalhão em mãos, decepou os cabos de energia elétrica em ato público de violação de equipamento contratado pela própria prefeitura, a que chamou de um gesto simbólico de cumprimento de promessa de campanha.
Ainda pela manhã, a nova presidência da Empresa Municipal de Mobilidade Urbana de Marília (Emdurb) havia publicado portaria em que determinava a “suspensão dos medidores de velocidade” por “tempo indeterminado”. Veja abaixo:
A portaria satisfaz a dívida eleitoral provisoriamente a tempo de que Vinicius ganhe o favor da opinião pública enquanto busca uma saída jurídica para eventual ruptura contratual – ou não, a depender do comportamento do trânsito pós-suspensão dos radares.
Ciente do risco de seu ato político à vida exposta, e agora menos fiscalizada, do cidadão nas ruas e avenidas da cidade, Vinicius ponderou: “Eu peço encarecidamente à população que tenha bom senso com limite de velocidade em nossa cidade”, falou.
Embora tenham sido suspensos para aplicação de multas, os radares seguem ativos (exceto que a empresa decida desligá-los), na identificação de veículos em situação ilegal em tráfego pela cidade através de convênio entre o município e a Polícia Militar.
MINORIA INFRATORA
Em que pese o custo, de que trataremos mais abaixo, a manutenção dos equipamentos de fiscalização de trânsito não tem interferido no bolso da maioria dos motoristas com veículos emplacados em Marília.
A aferição consta de levantamento da Emdurb, a que o blog teve acesso. Segundo os números, de 189.907 veículos emplacados na cidade, 136.099 (71,7%) nunca foram autuados desde o início da operação dos radares, em maio de 2023.
Outros 28.606 (15,1%), a quem o prefeito chama de “distraídos”, acabaram flagrados pelos radares apenas uma vez. Há 21.981 (11,6%) reincidentes de duas a cinco vezes; 2.494 (1,3%), de cinco a dez e 727 (0,4%), acima de dez.
Na prática, a suspensão dos radares favorece uma minoria que reiteradamente ignorou a fiscalização eletrônica e sinaliza à maioria uma falsa flexibilidade dos limites de velocidade de trânsito nas vias municipais.
Apesar da suspensão dos equipamentos, a fiscalização de trânsito continua, conforme determina o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), com apoio da fiscalização dos agentes de trânsito da Emdurb.
Na prática, a nova administração municipal desativa uma fiscalização técnica, protegida por dados aferíveis, pela exclusiva atuação humana, sujeita à subjetividade na aplicação de multas no trânsito de Marília.
Enquanto seja válida a portaria publicada neste sábado (4), os motoristas não poderão ser multados pelos radares, mas as autuações anteriores não podem ser invalidadas, exceto se já tenham sido alvo de recurso julgado pela Emdurb.
Velocidade exposta: lombada eletrônica pode servir de apoio para multas manuais
CUSTOS E VALORES
A fiscalização eletrônica do trânsito é concedida à iniciativa privada em Marília. O contrato foi assinado com a Talentech Tecnologia Ltda, de São Paulo, em 2 de fevereiro de 2023, e tem validade até 1 de fevereiro de 2028.
O serviço contratado é de “locação, implantação e operacionalização de softwares, equipamentos e infraestruturas necessárias para processamento de dados, coleta, armazenamento, transmissão e gestão de dados e imagens”.
No contrato, a Emdurb se comprometeu a pagar R$ 466,9 mil mensais à Talentech. O valor foi reajustado em dezembro de 2024, último mês do governo reeleito de Daniel Alonso (PL), para R$ 488 mil.
No entanto, a empresa municipal pagou ‘apenas’ R$ 4,7 milhões dos R$ 8,8 milhões devidos à empresa, segundo o Portal da Transparência da Emdurb – R$ 905 mil, em 2023, e R$ 3,8 milhões em 2024.
Segundo a mesma fonte, a arrecadação com “multas por infração” aumentaram de R$ 8,2 milhões, em 2023, para R$ 17 milhões, em 2024. Em ambos os anos, os valores representaram mais de 90% da receita anual da Emdurb.
Ou seja, o município arrecadou com a aplicação de multas, por radares e agentes, cinco vezes mais do que já pagou – no caso, à locação dos serviços de fiscalização eletrônicas, sem contar os salários de seus empregados que atuam no trânsito.
A legislação vigente determina que os recursos arrecadados por multas sejam aplicados em ações relacionadas ao próprio trânsito. No entanto, desde outubro de 2024, 30% do valor passou a ser remanejado ao orçamento municipal, por decreto.
A suspensão dos radares deve provocar uma drástica redução na entrada de recursos à empresa pública que, além de trânsito, administra ainda a rodoviária e os cemitérios, que retornaram à sua competência há poucos meses.
RADAR X MORTES
A instalação da fiscalização eletrônica em Marília em 2023 ocorreu sob silêncio oficial na segunda metade do governo reeleito do ex-prefeito Daniel Alonso (PL), mas não demorou para alardear críticas e desconfianças.
O estudo técnico que teria sido utilizado como parâmetro para instalação dos radares justificou a instalação em apenas quatro de 25 pontos de fiscalização. O documento foi enviado à Câmara Municipal, a pedido do vereador Danilo da Saúde (PSB, hoje PSDB), somente após sete meses da aprovação de requerimento.
Este blog submeteu a escolha aos dados oficiais do Infosiga de 2022 e 2023 para checar se as estatísticas de acidentes e mortes no trânsito indicavam a fixação do radar – conhecidos como ‘pardais’ – em cada um dos locais escolhidos. Confira esta reportagem AQUI.
Das 15 vias urbanas envolvidas em acidentes fatais, apenas duas têm fiscalização eletrônica de velocidade: a Via Expressa, na zona sul e a avenida Sanches Cibantos, na saída para o Distrito de Padre Nóbrega. Duas pessoas morreram.
Na madrugada deste sábado (4), três jovens ficaram feridos na batida de um carro contra um barranco, na avenida Cascata, na zona leste. O acidente ocorreu a menos de 100 metros do radar instalado há poucos meses no sentido centro-leste.