Há exatos 51 anos, um sacerdote recém-ordenado recebia das urnas a raríssima missão de administrar uma paróquia e uma cidade ao mesmo tempo sob o espírito de uma igreja em abertura e a opressão da ditadura. Conheça a história do monsenhor Nivaldo Resstel
Trazidas para Marília após um dia intenso de votações, as urnas das eleições municipais de 1968 da vizinha Oriente (SP) concentraram as atenções nas mesas de apuração instaladas no antigo ginásio estadual da avenida Sampaio Vidal naquele fim de tarde de 15 de novembro. Mesmo a eleição do novo prefeito da cidade, Octávio Barreto Prado (1921-1978), o ‘Tatá’, acabou em segundo plano.
O motivo de tanto interesse de todos os envolvidos nas eleições, da população – inclusive a de Marília – e da imprensa não poderia ser tão singular: dos dois únicos concorrentes à chefia do Executivo de Oriente, um já ocupava o poder municipal, como vice-prefeito, e o outro, debutante na política, era o padre da cidade.
O resultado foi um feito raríssimo na história da Igreja Católica no Brasil: com 61,3% dos votos válidos, um pároco venceu nas urnas e assumiu uma administração municipal sem deixar de presidir a própria comunidade – no caso, a Paróquia Nossa Senhora Aparecida. Oriente escolheu o padre-prefeito, Nivaldo Resstel.
PERMISSÃO EPISCOPAL
A preferência do povo orientiense, majoritariamente católico, começou como uma sondagem. Ansiosa por uma ‘mudança de ares políticos’ na cidade, os fieis procuravam por alternativas e encontraram no padre, um homem de 35 anos, culto e reconhecido pela administração exemplar de sua igreja, um potencial prefeito.
“De início, eu rejeitei, claro”, lembrou o padre. Prestes a completar 87 anos – a ser comemorado em 1º de dezembro – ele recebeu o blog no apartamento onde mora, no centro de Marília. “Expliquei que não poderia assumir e que deveria servir a igreja, embora gostasse de política”, recordou, com leve sorriso.
Sem muito avanço nas tratativas com o padre, os paroquianos recorreram ao arcebispo de Marília à época, dom Hugo Bressane de Araújo (1898-1988). Agendaram audiência, formaram comissão e explicaram pessoalmente ao epíscopo a necessidade da indicação do padre para a prefeitura da cidade.
“Dom Hugo havia acabado de participar pessoalmente do Concílio Vaticano II (1962-1965). Ele estava com todas aquelas ideias de mudança da igreja frescas na cabeça. Nessa aí calhou de atender o povo e autorizar minha candidatura”, contextualizou o padre, que se filiaria pouco depois ao antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB – 1966-1979).
Dom Hugo utilizou da prerrogativa de exceção disposta no Código Canônico quando se trata, no cânon 287, da não permissão aos padres da participação em partidos políticos, senão “a juízo da autoridade eclesiástica competente” em situações de “defesa dos direitos da igreja ou a promoção do bem comum”.
Atualmente, a praxe mais comum dos bispos é pela determinação da dispensa do uso de ordens enquanto o padre for candidato ou exerça cargo público, com posterior reanálise para readmissão à vida eclesiástica. A dupla gestão do padre-prefeito Nivaldo Resstel faz da autorização de dom Hugo um caso excepcionalíssimo até os dias de hoje.
EXPERIÊNCIA DE GESTÃO
A permissão extraordinária do bispo ao padre-prefeito não foi por acaso. Padre Nivaldo ainda tinha 26 anos quando recebeu pelas mãos de dom Hugo Bressane a sua ordenação sacerdotal, em cerimônia realizada em 19 de dezembro de 1959, na catedral São Bento, em Marília, onde iniciaria sua atuação presbiterial.
A necessidade da formação de novos padres levou o bispo a solicitar à Santa Sé – onde tinha trânsito direto – a instalação do primeiro seminário diocesano - o São Pio X. O próprio padre Nivaldo Resstel, seria o primeiro reitor, em 1963 e 1964, antes de ser transferido para a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, em Oriente, em 1965.
O novo padre não demorou muito a implantar na pequena cidade as mudanças que chegavam do Concílio Vaticano II: celebração das missas de frente para o povo e em português, organização de estudos bíblicos, entre outras novidades para a época, além do esforço para atender as comunidades rurais. Foi deste trabalho diário a forja da imagem de gestor eficiente que o povo aclamaria anos depois, nas urnas.
DUPLA JORNADA
A eleição do padre-prefeito entusiasmou Oriente. Seja pela derrota imposta à gestão anterior, representada no pleito pelo vice Nick Carter Moris, da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de apoio aos militares; ou pela expectativa gerada pelo impacto de benfeitorias que sua eleição geraria à cidade.
Para tanto, Resstel precisou ajustar sua rotina para dar conta da dupla jornada diária: reservou as manhãs para seu ofício de pároco e o expediente da tarde ao de prefeito. De uma gestão para a outra bastava atravessar a rua. Ainda hoje, a distância entre um gabinete e outro continua a mesma de menos de um minuto.
“Além de padre e prefeito eu ainda encontrava tempo para lecionar francês e religião”, conta Resstel. “Mas eu sempre separei muito bem as coisas, cada uma a seu tempo. Não tratava das coisas da paróquia na prefeitura e muito menos comentava sobre questões da administração nas homilias das missas”.
PRIMO GENERAL
Mais do que vigiar suas declarações públicas em ambientes distintos, o padre estava atento mesmo era no que “as paredes da igreja ou da prefeitura ouvissem”. A promoção dele a um cargo público o expôs, mais do que nunca, às atenções dos militares que haviam acabado de assumir o governo do Brasil.
“Dependendo do que se falasse na igreja o padre já era marcado como ‘de esquerda’. Eu não era de lado nenhum. Mas, me precavi, claro”, conta Resstel. “Foi uma época muito difícil. Chegaram a arrastar muita gente”, afirmou, referindo-se às prisões arbitrárias comuns naqueles anos de chumbo no Brasil.
Entre os militares, o sobrenome Resstel, de origem alemã, era sinônimo de respeito. Não pelo padre, mas por seu “primo distante até demais”, o general-de-brigada e veterano da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Rubens Resstel. Companheiro de trincheira do ex-presidente Castello Branco (1897-1967), o parente do padre tinha acesso irrestrito ao governo.
“Quando a situação apertava para conversar com alguma autoridade bastava eu falar meu nome completo para se abrirem portas. Perguntavam: ‘o que você é do general?’. Eu dizia que era primo e seguia em frente”, contou, aos risos, Nivaldo Resstel. Ele negou, no entanto, que tivesse recebido qualquer proteção dos militares por conta do parentesco com o parente de farda famoso.
FÉ E OBRAS
A exemplo dos dias de hoje, o padre-prefeito precisou buscar recursos no governo estadual para administrar sua cidade. “O gabinete não tinha carro e a situação financeira da prefeitura, para variar, estava muito difícil”, contou Resstel. Entre uma reza e uma viagem a São Paulo, ele conseguiu apoio necessário para conduzir sua administração com fé e obras.
É da gestão do padre-prefeito a ampliação do sistema de abastecimento de água e do tratamento de esgoto, a criação da biblioteca municipal e as instalações de um ginásio, de uma escola estadual e do hospital da cidade. “Fomos a primeira cidade da região a dispor de transporte escolar para nossos alunos estudarem em Marília”, gabou-se.
Apesar da conquista do colégio, o padre-prefeito reprovou a denominação reservada a Dona Vitu Giorgi. “Eu não queria mesmo. Era uma madame que vivia em São Paulo, mal aparecia na cidade. Deixasse ‘escola estadual de Oriente’ mesmo. Mas, não teve jeito. Ficou o nome dela até hoje”, conformou-se Resstel.
CARREIRA INTERROMPIDA
Controvérsias à parte, o padre-prefeito acabou por se interessar pelo ofício – o da política, no caso – a ponto de pensar em continuar, além da inusitada gestão municipal. E não foi por falta de oportunidade. Em 1973, já no último ano de mandato, Resstel recebeu um convite para formar uma dobradinha: Marco Antonio Castello Branco de Oliveira, para estadual; e ele, o padre, para federal.
Antes que aceitasse, Resstel precisou consultar o bispo. Desta vez, no entanto, a conversa foi com um capuchinho que, desde 1969, já atuava como auxiliar de Dom Hugo e ficou com a incumbência de tratar sobre o assunto. Com dom Daniel Tomasella (1923-2003) a conversa foi diferente. “Não precisamos de políticos, mas de padres”, avisou.
“Bem que eu queria seguir na carreira política, mas aí apareceu o dom Daniel na história (risos). Ele fez bem: falou como bispo, mas também amigo. Eu acabaria por agradecer por isso, anos depois”, contou Resstel.
VIDA (DE PADRE) QUE SEGUE
Ao final de seu mandato, em 31 de janeiro de 1973, Resstel retomou sua vida exclusivamente paroquial. Ainda naquele ano seria transferido para a Paróquia São Pedro Apóstolo, de Tupã (SP). “Quando cheguei lá me perguntaram se eu não poderia ser prefeito de novo. Claro que disse não, né”, divertiu-se o padre.
Não demorou para que o padre se visse envolvido com mais de uma função de gestão – agora, na própria igreja. Nomeado vigário geral da região II – cuja jurisdição são as paróquias entre Herculândia (SP) e Adamantina (SP) – ele orientou colegas e dedicou-se a trabalhos sociais.
Em 1990, Resstel foi transferido para a Paróquia Nossa Senhora da Glória, de Tupi Paulista (SP). Naquele mesmo ano, o padre receberia o título de monsenhor – conferido pelo próprio papa (São João Paulo II – 1920-2005) por serviços prestados à Igreja – em cerimônia realizada no dia 21 de dezembro.
O agora monsenhor Nivaldo ainda passaria pelas paróquias de Nossa Senhora do Rosário, de Pompeia (SP); Santuário Nossa Senhora de Glória, em Marília; Sagrado Coração de Jesus, em Vera Cruz (SP) e São Francisco de Assis, em Dracena (SP). Aos 86 anos, Resstel faz ‘uso de ordens’. Ativo, tem atendido prontamente os convites para celebrações de missas, mesmo na pandemia.
E SE FOSSE HOJE?
Cinquenta e um anos após o resultado das eleições, o protagonista desta história raríssima na igreja e na administração da pacata Oriente diz que o enredo seria diferente. A começar pelo candidato. “Eu prepararia outra pessoa. Não houve tempo para isso na época. Fosse hoje, não precisaria ser o padre”.
Entre ter sido prefeito e o ofício do sacerdócio, que exerce há 64 anos, completados em 2023, Resstel disse não haver diferença “para fazer o bem, naquilo que seja próprio de sua profissão ou oficio”. “Foi uma boa experiência ter sido prefeito, eu não nego. Deixei o cargo, mas continuo a administrar, com fé e obras, os destinos dos eleitos de Deus”.
Aos 90 anos, completados em 2023, o único padre-prefeito da história da Diocese de Marília reside atualmente em um lar de idosos, em Pompeia (SP). Apesar da idade avançada, ele segue no exercício do sacerdócio.
PADRE-PREFEITO-CARTOLA
A exemplo do monsenhor Nivaldo Resstel, outros sacerdotes também acumularam expediente no altar e no paço municipal nos rincões do Brasil. Em Catanduva (SP), o padre Osvaldo de Oliveira Rosa (PSDB) foi além.
Eleito prefeito em 2010 pela coligação 'Catanduva para Todos' (PSDB-PSC-DEM-PSL-PV-PL-PDT-Podemos) em seu 22º ano de ordenação presbiteral, Rosa ainda é presidente do Catanduva Futebol Clube, que ele criou.
Hoje Monsenhor Nivaldo Hestell, que não quis assumir como Bispo. Meu parceiro de mais de 12 anos de jornada no Cursilho, e, o maior Prefeito de Oriente. Adentrava a sala do governador sem ser anunciado. Hoje já afastado por aposentadoria, mas ainda monsenhor e um grande e verdadeiro sacerdote. Esteve presenta na ordenação do primeiro padre Mariliense, meu tio Odilon Barbosa, e participou da primeira missa, onde eu e meus primos fizemos a primeira comunhão. Faleceu no ano de 2023. Tinha 91 anos. E estava cobrindo o Padre cantor de Curitiba. A Igreja Católica precisa de um novo concílio, para rediscutir a ideia obsoleta da direita conservadora (renovação carismática). Eles não querem o futuro na igreja, querem preservar assuntos jamais…